Capítulo I
Tirou o boné azul que levava sobre a cabeça e soltou os
cabelos castanhos, deixando que a brisa suave que circulava na rua os afagasse
em liberdade. O dia estava lindo e Alex sentia-se bem consigo.
Eram dez horas da manhã e Matilde, a
sua melhor amiga e companheira habitual de férias, ainda dormia. A noite
anterior fora dedicada à diversão e a hora de deitar tinha sido tardia. Alex
não precisava de muitas horas de sono e não se importava de passear sozinha por
isso, deixara Matilde na companhia de Morpheus
e saíra para apanhar o sol fresco da manhã.
Estavam no início do mês de Julho e encontravam-se de
férias no Carvoeiro, uma das pontas mais distantes e belas do Algarve.
Caminhou até ao fundo do estacionamento privativo do
hotel onde estava hospedada e observou a rua.
- Onde vou tomar café hoje? – Perguntou a si mesma.
Levantou os olhos para o céu azul saboreando o novo dia e
dirigiu-se à esplanada onde, invariavelmente, acabava por tomar o
pequeno-almoço desde que chegara, fazia quase uma semana.
Parou no início da rua e passeou o olhar em redor.
Observou a sequiosa árvore plantada no passeio em frente e espreitou o mar azul
por entre as frestas que as pequenas habitações de rés-do-chão e primeiro andar
deixavam abertas. Inspirou o aroma que, dada a proximidade, se desprendia do
mar e voltou os olhos para a rua, que descendo se retorcia lá ao fundo, em
direção ao largo da praia. Automóveis amontoavam-se sob os edifícios que
ornamentavam a estreita descida, que constituía a rua principal da vila do
Carvoeiro. Para Alex, as ruas e o agregado de pequenas casas e prédios baixos,
enfeitavam esplendorosamente a pequena vila que, apesar de pitoresca, não era
comparável à cidade do Porto, com os seus grandes e inovadores edifícios e as
grandes avenidas e autoestradas. Alex adorava o Porto, a cidade invicta, assim denominada
porque jamais havia sido conquistada e que constituía, na sua opinião, a melhor
cidade do país para se viver. Mas claro, como toda a gente que trabalha durante
um ano inteiro, adorava sair daquela cidade durante as férias e o Carvoeiro
tinha sido um dos seus lugares de eleição nos últimos dois anos.
Passou a fita da pequena
mala, que sempre carregava consigo nas férias, pela cabeça para que ficasse
atravessada no peito e não correr o risco de ser assaltada facilmente, hábitos
da cidade grande, costumava dizer-lhe Matilde, a sua melhor amiga e companheira
de profissão. Satisfeita, deu início à pequena caminhada que a conduziria à
praia do carvoeiro, um local pitoresco e extravagantemente esculpido pela
natureza e prolificamente retratado nos postais.
Dirigiu-se à esplanada «o
barco». O nome do café era bastante apropriado, uma vez que o tradicional
balcão tinha sido substituído pela lateral de um dos pequenos barcos de pesca
caraterísticos da vila. A esplanada situava-se num dos lados da praceta junto à
praia, o que lhe permitia observar os barcos pintados com cores garridas e
batizados com nomes curiosos, que sistematicamente aludiam à proteção divina.
Todas as manhãs, os pescadores envergando camisas enfeitadas por pequenos
quadrados e sempre arregaçadas até aos cotovelos, botas de cano alto e chapéus
desgastados pelo sol e pela água, arrastavam os barcos pela praia acima,
deixando-os repousar sob o sol abrasador, que lhes secava as pequenas gotas
deixadas pelos beijos do mar, até à madrugada do dia seguinte, quando todo o
percurso recomeçava. Ocasionalmente divertia-se a analisar as pessoas tostadas
que teimavam em transformar o vermelho-camarão em castanho-torrado. Nunca
conseguiria entender a persistência que se traduzia em horas intermináveis de
prostração sob um sol abrasador, que lhes deixava a camada protetora num estado
lastimável, de tão queimada. Ela preferia passear pela praia e sempre que
Matilde a conseguia convencer a ficarem deitadas, nunca ultrapassavam um par de
horas, sempre protegidas com generosas camadas de protetor solar e chapéus
ridículos, de abas exageradamente largas.
Ao
aproximar-se do pub dos ingleses,
como era conhecido o pequeno café que ficava a meio da rua, percebeu a
existência de um pequeno tumulto junto à esplanada do café em frente. Parou. Durante
alguns minutos permaneceu observando a cena para tentar perceber o que a teria
despoletado. De súbito, passou pela sua cabeça a possibilidade de que alguém
podia ter sofrido um ataque cardíaco e atravessou a rua. Aproximou-se do
aglomerado de pessoas que se ia formando, enquanto equacionava a possibilidade
de que, afinal, alguém teria sido atropelado e ia pedindo aos santos, de que
ainda lembrava o nome das aulas da catequese, para que não tivesse sido grave.
Não tinha grande formação para auxiliar quem estivesse necessitado, mas tinha sangue
frio e discernimento suficiente para chamar as autoridades competentes, se
fosse necessário, além disso, era possível que se tratasse de algum turista e
fossem necessárias as suas capacidades de tradução.
Acercou-se
e reparou que algumas pessoas empunhavam máquinas fotográficas que levantavam
sobre as cabeças, na tentativa de obter imagens e constatou que outras se dirigiam em inglês a um homem de óculos
escuros e boné preto que, de tão enterrado na cabeça, quase não permitia
vislumbrar-lhe a cara.
- How is Eleanor, Rob (como está a Eleanor, Rob) [1]?
Are you alone (estás sozinho)[2]?
– ouviu alguém perguntar.
- Is she with you (ela está contigo)? – questionou outro.
O homem, esmagado pela
multidão, balbuciava negações e tentava escapulir-se junto à parede. Alex
perguntou à jovem que, fazendo uso dos cotovelos, tentava afincadamente passar
por ela para chegar junto ao homem empurrando, sem qualquer cerimónia, as
pessoas que, cada vez mais, se iam juntando à volta.
- Houve algum acidente?
Quem é que ficou ferido? – questionou com ansiedade.
- Não houve acidente
nenhum! É o Robert Evans. Está aqui! – Esclareceu a jovem soltando um grito de
satisfação e, esquecendo-se dela, entrou em histeria levantando os braços
enquanto gritava em inglês – Amo-te Rob! Amo-te Rob!
Ao seu
lado ouviu alguém lamentar: «pobre rapaz, nem pode sair à rua…eu não queria
estar na pele dele!»
Alex rodou, de novo, os
olhos na direção do homem. Viu uma jovem loira e confiante tirar-lhe o boné que
ele tentara, em vão, segurar na cabeça; outra puxava-lhe a camisola com uma mão
e, com a outra, tentava agarrar os óculos escuros que ele usava. O homem, que
aparentava não ter mais de vinte e cinco anos, esforçava-se por subir a rua, o
que parecia uma tarefa votada ao insucesso, pois estava encurralado contra a
parede.
Que cena ridícula,
cogitou, e eu a pensar que se tratava de um acidente.
Virou-se para se afastar
mas, inesperadamente, sentiu-se embalada pela multidão. Tentou recuar, mas
verificou que não conseguia. Tentou virar-se de lado e caminhar para um dos
lados, mas em vão; estava a ser, perigosamente, empurrada na direção da parede.
A força da multidão era tanta que, apesar de não mexer os pés, de repente
viu-se encostada ao rapaz a quem, entretanto, alguém tinha conseguido tirar os óculos.
Os olhos que a fitavam eram azuis e deslumbrantes, os mais bonitos que alguma
vez vira, mas não foi nisso que a sua atenção se centrou. O que chamou a sua
atenção foi o olhar estarrecido e completamente desorientado que o rapaz lhe
dirigia.
- Não, Não! Vocês estão
enganados!) – Repetia sem cessar em inglês focando, exasperado, os olhos que,
subitamente, via bem à sua frente: os dela. Alex viu-o desviar o olhar para
baixo procurando, de forma desesperada,
afastar de si as mãos que, implacavelmente, pareciam grudar-se ao seu
corpo.
O jovem falava em inglês
mas ninguém parecia ouvi-lo, ou entender, o que ele dizia. Provavelmente era
alguém do mundo do espetáculo que se vira encurralado, pensou. Sentiu a
compaixão descer sobre si e ouviu-se dizer em inglês:
- Mark! Estás aqui! O que
andas a fazer? O que é toda esta confusão?
- Fixou o olhar no azul ofuscante que tinha à sua frente, na esperança
de que ele entendesse a sua intenção. - Estão a dizer que és o Rob Evans?! Que
bom, aproveita o teu minuto de fama! – As raparigas que se encontravam mais
próximas olharam-na com espanto.
- Mark? Quem é o Mark?
Este é o Robert Evans, o ator …. Eu vi o último filme dele! – Afirmou com
rudeza uma jovem loura desafiando-a.
- Claro, claro. - retrucou
Alex – Querem um autógrafo, certo? Querem guardar uma recordação também, não? –
Acrescentou com um sorriso trocista a bailar-lhe nos lábios irónicos,
enfrentando a jovem que pouco antes a desafiara com o olhar. Virou-se para o
rapaz, cujos olhos manifestavam agora curiosidade e ofereceu-lhe o esboço de um
sorriso, piscando-lhe o olho. - Estás a ver Mark? Ontem reclamavas de vir
passar férias a casa da tia Augusta e, agora, tens as miúdas todas aos teus
pés!?…Da próxima vez, não reclames de Portugal! - Declarou alto e num tom de
voz complacente.
Nos olhos dele surgiu uma
centelha de compreensão e os seus lábios produziram o mais lindo sorriso
enviesado que ela tinha visto em todos os seus vinte e oito anos de vida,
enquanto ele lhe pousava o braço direito sobre os ombros e ia dizendo:
- Of course not, cous (claro que não, prima) [3]!
Não há melhor que Portugal! É que… fui apanhado de surpresa… – Levantou o braço
que se encontrava livre e rodou a mão em volta como se buscasse uma caneta. -
Quem quer o meu autógrafo? - Parou os olhos
numa das jovens que se encontrava à sua frente.
- Onde queres que assine? Na camisola? – a rapariga acenou
afirmativamente com a cabeça, admirada com a sua boa sorte. O rapaz pegou no
marcador que ela lhe estendia e alteou uma sobrancelha ao vê-la apontar para o
peito. – Hum…ok. O sonho de qualquer homem! – Um pouco acima do peito rabiscou:
“With love, Mark”.
Algumas raparigas que se
encontravam próximas, entreolharam-se com desconfiança. Uma delas fitou Alex
com o sobrolho carregado indiciando contrariedade e desviou, de novo, o olhar
para o rapaz.
Apesar de se encontrarem
literalmente encostados à parede, tanto o rapaz como Alex ofereciam aos
presentes um sorriso divertido e condescendente.
Por fim, a rapariga com
cara redonda e de cor castanho-torrado, com olhos esbugalhados da mesma cor
que, com grande afinco, empurrara à cotovelada todos os que estavam ao seu
lado, disse alto:
- Oh! É um impostor! Não é
o Rob. Era bom demais para ser verdade. Eu bem me parecia…
Algumas raparigas que se
encontravam próximas voltaram a olhar para o jovem desconfiadas, ao ouvi-lo dizer:
- Lá na Escócia, as meninas não são tão fáceis
de convencer…
Outra rapariga que se
encontrava mais afastada titubeou:
- Oh, não é o Rob? A
sério? Pois, realmente este tem um sotaque esquisito, nem parece inglês… – e
olhando para as companheiras, ordenou: - Vamos embora!. Deram meia volta e, à
cotovelada, afastaram-se indignadas. Outras seguiram-lhes o exemplo. Uma jovem,
cujos olhos faziam lembrar os de um rato, permaneceu na frente deles. De
repente esticou o dedo indicador tão abruptamente que, se o rapaz não se
afastasse, lho enfiava no olho. Franziu a testa e asseverou:
- Não é o Rob. É um
idiota! - vociferou. - Não devia enganar
assim as pessoas! - atirou-lhe o boné que tinha conseguido surripiar à amiga e
afastou-se reclamando. - Este tem uns olhos azuis sem graça…
Alex arregalou os olhos
com incredulidade e virou-se para outra que, pensou, bem podia ser irmã da
anterior e perguntou:
- Queridinha não quer devolver os óculos? Está
sol e já que não quer nada com o meu primo Mark…Tem a certeza que não está
interessada? - insistiu dando risadinhas de satisfação. - Ele ia ficar muito
contente… - insistiu.
O jovem, que continuava
com o braço pousado sobre os seus ombros, deu-lhe um pequeno toque com a mão,
achando que ela estava a abusar da sorte, mas Alex rodou o rosto para ele e
ofereceu-lhe um sorriso divertido.
De repente todos começaram
a afastar-se e Alex sentiu a pressão nos seus ombros diminuir. Só naquele
momento tomou consciência da força que estava a suportar. Com a excitação, nem
se apercebeu que o jovem estava a fazer uma compressão tremenda. Apesar disso,
a sensação era boa, quente. Inconscientemente, estremeceu. Abanou os ombros e
agitou levemente os braços para se descontrair e aliviar a dor que, até então,
não se apercebeu que sentia.
Ambos permaneceram em
silêncio por alguns minutos. Verificando que continuava encostada ao rapaz,
Alex afastou-se ligeiramente, virou-se para ele e perguntou, num inglês
perfeito:
- Estás bem?
Ele respondeu-lhe na mesma
língua mas, ao contrário do que tinha acontecido há instantes, apresentava um
perfeito sotaque londrino.
- Sim. Agora estou.
Suponho que tenho de te agradecer…muito obrigado! –Recolocou os óculos escuros
e o boné, enquanto observava, de relance, as jovens que o tinham assediado a
afastarem-se.
- Não precisas de
agradecer. Confesso que até foi bastante divertido! – fitou-o nos olhos e
acrescentou – Além disso, todas as pessoas deviam poder andar à vontade na rua,
quer sejam atores, atrizes ou coisa nenhuma!
- Às vezes não é possível,
como viste… – deixou escapar, com a voz estranhamente angustiada.
Alex desviou o olhar para
observar as últimas jovens curiosas a afastarem-se, ainda comentando o
sucedido.
- Bem, parece que por agora,
as coisas estão calmas… - Virou-se de novo para ele e verificando que estava um
pouco constrangido, apressou-se na despedida. - Fica bem. Tem um bom resto de
dia e… boas férias!
Dito isto, voltou-se,
disposta a retomar o seu caminho em direção à esplanada para tomar o café da
manhã. Reiniciou a caminhada descendo a rua em direção à praia, enquanto ia
pensando que não era todos os dias que via um par de olhos como os daquele
rapaz. Ainda pensou em virar-se para trás com o intuito de verificar se o resto
do corpo combinava com os olhos, mas teve medo que ele a visse. O seu dilema
demorou poucos segundos a resolver pois, pensou, já que o salvara de uma
situação complicada, o mínimo que ele podia fazer era deixá-la apreciar o
invólucro total. Parou e virou-se para trás. O jovem subia a rua com ar calmo e
displicente. Envergava calções de caqui beije que lhe assentavam bem, não sabia
se devido ao modelo dos calções ou se ao que estava por trás deles, desceu os
olhos para os ténis pretos, de marca, verificou, e voltou a subir para observar
os ombros largos e a t-shirt branca
que deixava antever uma silhueta
perfeita. Nada mal, pensou para si mesma, e é alto, mais de 1,80 cm calculou,
atendendo aos seus 1,65 cm. De repente ele voltou-se e ela retraiu-se virando-lhe
as costas repentinamente. Que parvoíce, cogitou, analisar o corpo de um homem
daquela forma. Aproximou-se da esplanada e sentou-se na mesa habitual, de
costas para a rua, não fosse ter a tentação de olhar para o rapaz outra vez.
Esticou as costas procurando relaxar e pegou na ementa. Após alguns minutos de
análise decidiu-se pelo café e torradas, que se tornaram habituais desde que
chegara à vila.
- Please (por favor)… – ouviu atrás de si. Virou-se e deu de caras com o dono dos
deslumbrantes olhos azuis. Engoliu em seco.
- Sim… yes? – Emendou, ao aperceber-se que
falara em português.
- Posso sentar-me?
- Se quiseres… –
respondeu, momentaneamente aturdida. Recompôs-se. – Vou tomar o pequeno-almoço.
– Lembrou-se do que a sua mãe lhe tinha ensinado sobre boas maneiras e
acrescentou: - Queres tomar alguma coisa?
- Sim. Pensei que seria
melhor não abusar da sorte e já que sou teu primo… – sorriu com um ar divertido
– suponho que será melhor conversarmos um pouco e, já agora, desfrutar da
ocasião. - Tirou o boné e sacudiu o cabelo que procurou alinhar com a mão,
enquanto se sentava na cadeira vaga à frente dela.
- Desfrutar da ocasião? –
Repetiu ela, observando-lhe os cabelos castanho claros, cheios de reflexos
provocados pelo sol que, apesar dos seus esforços, continuavam desalinhados e a
mecha que ele colocava para trás, continuava, teimosamente, a cair-lhe sobre a
testa. Meu Deus, o homem tinha um rosto deslumbrante.
- Sim. Eu gosto de passear
pelas ruas mas normalmente, como viste, não me posso permitir fazê-lo. Tenho
saudades. – Disse quase para si mesmo, olhando a praia em frente de modo
sombrio.
- Ah...percebo. Então és mesmo o Robert Evans… - disse, tomando consciência.
- Não vais desatar também
aos gritos, vais? – Perguntou esboçando um sorriso enviesado.
Que sorriso lindo,
observou Alex sentindo-se aquecer por dentro. O seu rosto era perfeito e tinha
uma expressão amigável, com os lábios a esboçarem aquele sorriso de parar o
coração. Menos jovem do que lhe parecera inicialmente, Rob era realmente um homem
bonito, com os cabelos castanhos revoltos em completo desalinho e aqueles olhos
de um azul profundo mas, paradoxalmente, quase translúcido e, notava agora,
dono de uma voz grave, extremamente sensual. Era, sem dúvida, digno de surgir
nas revistas da especialidade foi forçada a admitir, relembrarando o corpo
esbelto que observara a subir a rua, enquanto olhava para os braços musculosos
que a T-shirt deixava antever. Não era de admirar que as mulheres ficassem
loucas e andassem atrás dele mas, como todos os atores, devia ter um ego do tamanho do mundo e ela já tivera o seu
quinhão de homens que só se importavam consigo. Os homens, sobretudo os bem
parecidos, só traziam problemas e há muito tempo Alex tinha decidido que não
lhe interessavam. Quanto mais cedo este percebesse isso, melhor.
- Só na presença de Brad
Pitt, temos pena… – declarou com um sorriso irónico no rosto. - O que queres
tomar? – Inquiriu, procurando manter um ar descontraído e entregando-lhe a
ementa.
Rob fitou-a com um sorriso
nos lábios durante alguns minutos. Há muito tempo que uma mulher não lhe
dirigia um olhar desinteressado.
Alex suspendeu a inalação.
O homem tinha um sorriso de cortar a respiração.
- Brad Pitt, hein? -
baixou a cabeça para a ementa, parecendo absorto na leitura durante breves
momentos - Bem, eu até escolhia, se soubesse o que estou a ler – disse,
oferecendo-lhe um sorriso displicente.
- Se virares a página
podes ver a mesma coisa em inglês – esclareceu, com um sorriso trocista a
bailar-lhe nos lábios. Estendeu o braço e virou a ementa sem lha retirar das
mãos. - Sabes, apesar de pequeno, Portugal é um país bem organizado. Eu sou de
opinião que quando se visita um país estrangeiro devemos, pelo menos, saber falar o essencial da língua do país
que visita, mas como a maior parte dos turistas não tem essa preocupação,
designadamente os britânicos, a maior parte dos estabelecimentos portugueses
tem as ementas escritas em várias línguas…- terminou, de forma ríspida.
Ele levantou a cabeça
encaixando a crítica subjacente nas palavras dela e lançou-lhe o sorriso
enviesado que, sem ela perceber bem porquê, a fazia suspender a respiração.
Rob olhava-a de soslaio,
divertido. Pousou a ementa e observou-a. Era bem proporcionada, os seus ossos
marcavam levemente as maçãs do rosto que, combinados com a forma do queixo e a
boca pequena, lhe davam um ar de boneca, com os cabelos presos num rabo de
cavalo, debaixo de um boné azul-escuro com um símbolo na frente de um clube de
futebol, de que não lembrava o nome naquele momento. Verificou que a sua tez
era branca, apesar do clima mediterrânico da zona. Quando ela tirou os óculos
de sol, reparou que tinha olhos grandes e extraordinários, de um verde azeitona
pouco habitual, os mais belos que já tinha visto e que, no momento, não pareciam
nada agradados com a sua observação. Era linda, constatou. De repente deu
consigo a imaginar como o cabelo castanho-escuro lhe enfeitaria a cara se
estivesse solto, caindo sobre os ombros. Sentiu um estremecimento.
O empregado aproximou-se a
um sinal de Alex. Ela pediu um café e uma torrada. Sem saber o que escolher,
Rob decidiu acompanhá-la.
- Não sei o teu nome...
- Alex. Alexandra
Levington, muito prazer. – acrescentou, estendo a mão. Rob segurou-a entre as
suas durante um instante e depois, largou-a. Alex retraiu-se. Ele percebeu. O
seu olhar olhar dele incidia sobre ela por baixo das pestanas, com o indício de
um sorriso pretensioso a surgir-lhe no rosto.
- Então, cansaste das
fãs…- continuou Alex, mordendo uma torrada e esforçando-se para permanecer
descontraída.
- Nem por isso. O teu nome
não é português. – Observou mudando de assunto.
Alex encolheu os ombros.
A rapariga de trança loura
que se encontrava na mesa ao lado olhou-os com curiosidade. Alex percebeu o
movimento dissimulado de Rob ao recolocar o boné e os óculos escuros, mas
continuou:
- O meu avô era inglês –
explicou, bebericando o café. - Mas gostas de representar, de ser ator… -
insistiu, esperando que retorquisse, como ele não o fez, prosseguiu – mas se
não gostas de ser assediado, por que andas pelas ruas sem guarda-costas? Sempre
ouvi dizer que os artistas nunca saem sem eles…
- Não gosto de amas-secas
–, redarguiu secamente.
Mantiveram-se calados
enquanto degustavam o café. É pequena, meditava Rob, mas prestável e com uma
boca bem formada que devia ser deliciosa. Afinal, pensou, talvez se pudesse
divertir durante as férias. Desde que terminara, há cerca de dois anos com Eleanor, a sua última
namorada, que não mantivera qualquer
relacionamento. Na altura, decidira que as mulheres eram uma casta muito
complicada para ter algum tipo de relação séria, no entanto, um pouco de
diversão era sempre bem-vinda. Estava de férias e precisava de se distrair como
lhe lembrava constantemente Peter, o irmão mais novo que lhe fazia companhia
durante a estadia no Algarve.
Para cortar o silêncio e
desejosa de ouvir de novo a voz dele, ela continuou:
- Então, vais ficar pelo
Algarve muito tempo?
- Não sei – confessou.
- Estás cá sozinho?
- Não.
- Não és muito
conversador, pois não? – questionou com azedume. Afinal tinha sido ele que a
procurara.
- Às vezes – deixou
escapar, alteando uma sobrancelha ao perceber a mudança no tom de voz.
Um grupo de raparigas
aproximou-se da mesa que eles ocupavam. Alex percebeu o movimento e virando-se
para Rob, perguntou em português:
- O café aqui é muito bom,
não é? – Fez-lhe sinal com o olhar esperando que ele entendesse e dissesse que
sim. Rob percebeu a sua intenção, mas não sabia o que dizer ou em que língua
responder então, ajeitando os óculos, limitou-se a murmurar:
- Hum, hum – e rodou o
rosto, fazendo-o descansar sobre a mão esquerda na tentativa de o ocultar. Alex
continuou a dirigir-se-lhe em português.
- Logo podíamos fazer uma
caminhada ao longo da costa, o que achas? – Ele remexeu o boné e acenou com a
cabeça, na expectativa de que esse fosse o movimento de que ela estava à
espera.
A mais baixinha das três
raparigas e com aspeto de Minnie, pôs um ar de esperteza enquanto, de forma
estratégica e mal dissimulada, observava a ementa da mesa ao lado. De súbito, atirou-a
sobre uma das mesas livres e afastou-se em direção às companheiras.
- Eu disse-vos que o Rob
passava férias em Malibu, não aqui! - As três jovens soltaram uma sonora
gargalhada e afastaram-se em direção à praia.
Rob deu um longo suspiro e
com um laivo de frustração, declarou:
- Não devia estar aqui. –
O seu rosto apresentava-se perturbado.
- Se falasses
português…ninguém ia pensar que és o Robert Evans – observou criticamente.
Rob pousou os óculos sobre
a mesa e ofereceu-lhe o sorriso atravessado que a fez estremecer de novo.
- Sei dizer «obrrrigado» e
«porr favorrr» - tentou pronunciar com a voz carregada.
Alex foi incapaz de conter
uma gargalhada.
- Pois…é algo em que tens
de trabalhar. Mesmo que soubesses dizer uma frase completa, com esse sotaque,
não ias longe….
Riram em uníssono. Alex
voltou o rosto e encarou as águas calmas do mediterrâneo. – Apesar de tudo, o
mar é lindo, não é? – inquiriu quase para si mesma - sou capaz de ficar horas a
olhar para o oceano enquanto o meu pensamento vagueia por aí….
- Sim, o mar é relaxante -
assentiu ele, fitando-a. Alex tinha tirado o boné e os óculos de sol e os
cabelos caiam soltos emoldurando a cara bem-feita. Mesmo sem maquilhagem, tão
diferente das atrizes de Hollywood que se habituara a ver nos últimos anos,
Alex era estonteante. Estranhamente, sentia-se relaxado, o que não acontecia há
muito tempo, ponderou. Pena que não tivesse o poder de prolongar aquele
instante por mais tempo.
- Tens muito em que
pensar? – Quis saber, inclinando-se sobre a mesa para poder observá-la melhor.
– A que atividade te dedicas habitualmente?
- Sou professora –
respondeu, sorrindo da forma como ele colocara a pergunta.
- Professora? – Repetiu
inclinando a cabeça procurando visualizá-la numa sala de aula. Alex viu-o
abanar a cabeça em jeito de incredulidade.
- Porquê o espanto?
Parece-te assim tão improvável que eu seja professora?
Rob desceu o olhar para a
camiseta azul claro que ela envergava, depois para os calções de ganga que lhe
chegavam um pouco acima dos joelhos e observou os ténis brancos com uma lista
da cor da camiseta.
- Não – voltou a tentar
imaginá-la rodeada de crianças –, só não estava à espera, vendo-te assim…de
boné, calções esfarrapados….és educadora de infância?
- Não. Sou professora de
Ética ou, para ser mais precisa, sou assistente do professor responsável pela
cadeira… –, esclareceu. - Há algum problema? - perguntou com brusquidão,
observando o sorriso travesso no rosto dele.
- Pelo contrário, –
continuou dando de ombros - sempre me interessaram os problemas sobre o sentido
da vida. Pena que vocês não tenham encontrado uma resposta, não é?
- Sim, sim, mas tu
encontraste, claro. – Redarguiu com
secura. – Na verdade, esse não é um dos temas que desenvolvo, mas se quiseres
discutir o assunto, posso oferecer-te uma ou duas respostas, só não sei se irão
satisfazer-te. Tiveste aulas de Ética? – Ele abanou negativamente a cabeça –
Filosofia? – insistiu.
- Lembro-me de um ou outro
professor falarem de alguns filósofos, mas prefiro Newton e Einsten a Locke,
com toda a certeza.
- Bem, não é que saiba
muito das fórmulas de Newton e, certamente, não sei nada sobre as de Einstein,
mas não significa que não os conheça e me interesse por algumas das suas
conceções, simplesmente não é possível saber tudo, então, tive que optar –
terminou engolindo mais um pouco de café.
Rob contemplou-a por
alguns instantes enquanto levava a chávena aos lábios. Bonita e inteligente,
refletiu, uma combinação perigosa.
- Não respondeste à
questão inicial sobre o sentido da vida…- provocou-a Rob. – Continuam sem saber
nada, certo?
Alex encolheu os ombros.
Os homens bonitos e com tendência para parecerem inteligentes eram os piores,
pensou, mas o que havia de fazer? Inalou o ar que procedia do oceano e pousou a
chávena de café. Fitou-o nos olhos e questionou:
- Eu não trato,
habitualmente, dessa problemática mas, se quiseres, podemos falar um pouco
sobre ela…o que pretendes saber? Qual o sentido da vida ou se a vida tem
sentido?
- Ambos, suponho.
Alex respirou fundo e
prosseguiu.
- Tínhamos muito que dizer
sobre esse assunto e, nesta altura, não me parece o momento adequado, contudo,
a resposta mais simples que te posso dar é a que todos deviam saber, ou seja, a
melhor resposta, para qualquer uma das perguntas, será a que tu encontrares. Tens que conhecer as
respostas dos outros, obviamente, para saberes se outros já colocaram a mesma
questão e se encontraram alguma resposta satisfatória, mas a melhor resposta,
será sempre aquela que tu construíres, claro. Essa será a que te permitirá
conduzir na vida e, se assim o desejares, encontrar a felicidade – terminou.
Afastou o olhar em direcção ao mar e mordeu mais um pedaço da torrada que tinha
na mão.
Rob ofereceu-lhe um
sorriso rasgado. Não havia naquele rosto, verificou, qualquer sinal de aquiescência
ou, constatou com pesar, qualquer ímpeto de o agarrar e de o beijar.
- Felicidade…- refletiu –
Existe?
Alex reconheceu-lhe a
descrença na voz. Fitou-o em busca de um sinal que justificasse essa impressão.
Seria tão infeliz quanto a sua pergunta deixava transparecer? O que faltava a
um ator de renome mundial?
- Claro que sim! Se
souberes encontrá-la nas coisas simples e pequenas, É só juntá-las. Vais ver
que tens muitos pedaços.
Durante largos minutos,
ambos permaneceram calados, absorvidos pelos próprios pensamentos.
- Estou de férias com o
meu irmão Peter. No sábado da próxima semana vai haver uma festa…Podias vir…- e
informou – vai ser na casa amarela, da rua das flores.
Alex dirigiu-lhe um olhar
surpreendido.
- Já me agradeceste, não
precisas de dar uma festa! – e fez uma careta, deitando a língua de fora.
Rob ofereceu-lhe uma
gargalhada exibindo uma dentadura perfeita e extremamente branca.
- És divertida. Isso
agrada-me. Preciso de me distrair e esquecer os problemas.
- Ah, diversão é comigo
mesma. Sou humorista nas horas vagas. Tudo para satisfazer os turistas –
acrescentou, fazendo um esgar depreciativo. – Suponho que os atores tenham
muitas coisas em que pensar, como decidir o que vestir ou que carro conduzir,
já para não falar das experiências com bebidas e drogas inovadoras… – ironizou.
– Pois, mas no sábado… não posso. Combinei sair com uma amiga.
Rob remexeu nos óculos que
pousara sobre a mesa. Ficaram calados, de olhos postos um no outro,
avaliando-se mutuamente. Ele levantou os olhos para as nuvens que pareciam
correr sobre eles. Estava preocupado, pensou ela, não, apercebeu-se,
angustiado. Arrependeu-se de ter sido tão brusca.
- Desculpa. Não costumo
ser tão preconceituosa… – e pousou sobre o prato, o resto da torrada que já não
lhe apetecia comer.
Rob virou-se para ela. Os
seus olhos pareciam ter perdido o fulgor.
- Não faz mal. Suponho que
isso vem com a profissão. Mas nem todos os atores são assim. Eu gosto de pensar
que não sou… - e, mais uma vez, levantou os olhos ao céu. – Vocês têm sorte em
ter um céu destes. Dá vida a quem olha para ele. – Disse quase para si mesmo.
Levantou-se, virou-se para Alex e sorriu de novo. - Vou esperar por ti no
sábado, prometo que poderás encontrar algumas bebidas, nada inovador, apenas o
tradicional e quanto às drogas, espero que ninguém se lembre de trazer nenhuma.
Eu não sou a favor da liberalização – declarou. - Foi um prazer ser salvo por
ti, Alexandra Levington - e estendeu-lhe a mão, achando engraçado quando ela
hesitou antes de apertá-la. Deu-lhe as costas e foi-se embora, subindo a rua.
Capítulo II
- Acorda dorminhoca! Vamos
à praia.
- Hum...- resmungou a
amiga virando-se para o outro lado na cama.
- Já passa das onze…
Acorda! – Insistiu.
Com relutância, Matilde virou a cabeça para a olhar.
- Será que nem de férias
se pode dormir?
- Se dormes muito,
aprendes pouco! – Retrucou.
- Pois, pois. Mas os meus
neurónios descansam! – Matilde espreguiçou-se e esfregou os olhos. – Qual é a
pressa? Não podemos ir à praia de tarde? – Sentou-se, pegou num travesseiro e
colocou-o nas costas encostando-se à cabeceira da cama.
- Se calhar. Mas queria
falar contigo…
- Pois, já calculava. Diz!
– Ordenou.
Alex levantou-se, caminhou
até às vidraças que davam para a varanda e olhou o mar.
- Adoro esta vista. Adoro
o mar - declarou.
- Foi para isso que me
acordaste? – Questionou, amassando o travesseiro nas suas costas de forma a
colocar-se mais confortável.
- Não, – calou-se por
instantes e acrescentou - encontrei o Robert Evans na rua.
- O Robert Evans? Qual Robert?
- O ator, quem mais? Aquele
que fez aqueles filmes de guerra com os prédios a rebentar…
- Ah! Filmes de guerra? Estou
a ver…Robert, dizes? Eu também estive com ele ontem, não te tinha dito? – Redarguiu
com um sorriso travesso a bailar-lhe nos lábios.
Matilde era das pessoas
mais bem-dispostas que Alex conhecia. Apesar de ser um ano mais nova, em muitas
situações agia com muito mais experiência e sabedoria. Pequena e esguia,
deixava que os seus cabelos pretos compridos mostrassem os belos olhos
castanhos, francos e leais. A vida era para ser vivida com alegria e plenitude,
talvez por isso raramente se permitisse ficar mal disposta durante muito tempo,
preferia olhar o “copo meio cheio” em vez de considerá-lo “meio vazio”,
costumava dizer.
Alex deu as costas à
janela e virou-se para ela.
- Estou a falar a sério.
Encontrei-o encostado à parede, literalmente. – Explicitou, franzindo a testa enquanto
abanava a cabeça perante a cara de incredulidade da amiga. – Estava rodeado de
mulheres histéricas e como consegui salvá-lo da situação, ele convidou-nos para
uma festa em casa dele num destes sábados – terminou de forma rápida,
procurando mostrar-se indiferente.
- Estás a falar a sério? –
Alex aquiesceu. - Mentira!?
- Verdade!
Matilde desatou às
gargalhadas. Repentinamente, pôs-se de pé e pulou sobre a cama.
- Uau, que fixe! No sábado
vamos a uma festa em casa do Rob Evans. Incrível! – Parou de saltar. – Quando
eu contar isto lá na escola, ninguém vai acreditar! . Conta-me. Que tal é ele?
Melhor que no cinema? – perguntou, estreitando os olhos.
Alex respirou fundo.
Matilde iria fazê-la contar tudo, ela sempre conseguia isso. Sentou-se na beira
da cama.
- Não sei. Suponho que
sim. Parece um pouco estranho…
- Estranho? Como assim?
- Quando o encontrei
parecia…aflito e pouco depois, juntou-se a mim como se nada tivesse acontecido
e fosse algo absolutamente normal…
- Juntou-se a ti?
- Pára de repetir o que
digo! – bufou Alex. - Conversámos um pouco enquanto tomávamos o pequeno- almoço
na esplanada lá de baixo…- Matilde interrompeu-a.
- Espera. Que suspiro foi
esse? Conta tudo. Tomaram o pequeno-almoço e...
Alex teria que lhe contar,
era impossível escapar ao radar de Matilde.
Rob subiu os degraus que
separavam o passeio do acesso à porta da casa e entrou. Passou pelo hall de entrada sem o olhar e desceu os
dois degraus que lhe permitiriam sentar num dos sofás de pele beije e
confortável na sala de estar. Não parou. Desviou-se da mesa quadrada que
enfeitava a sala, mas que usava apenas para pousar os pés quando varava a noite
enquanto ouvia música e dirigiu-se ao terraço. Gostava de ficar ali sozinho.
Atirou-se sobre a poltrona colorida que o deixava ver o mar. Encostou a cabeça,
colocou a perna direita sobre o braço da poltrona e acendeu um cigarro.
Inalou o ar profundamente e
olhou o oceano que, àquela hora, se via salpicado de verde entre o azul que
dominava. As ondas fortes esbatiam-se contra a encosta. Eram belas mas ásperas,
rudes mas inflexíveis ao baterem na rocha dura que surgia cavada, incapaz de
resistir à força insistente das ondas. A rocha dura cansara-se de oferecer
resistência e esboroava-se a cada beijo do mar, desfazendo-se numa suave desistência,
pouco a pouco.
Também ele sofrera as
batidas fortes das ondas durante o último ano, ou melhor, pensou, durante os
últimos anos. Tal como o morro que se desfaz a cada batida do mar, também ele certamente se cansaria de resistir e se
decomporia. Fechou os olhos e recordou os anos em que os pais o traziam de
férias, a alegria com que saía do avião no aeroporto de Faro e como ele e o
irmão se debruçavam no táxi, ansiosos pelo vislumbre do Carvoeiro e do início do
verão que passariam na vila.
Correu de um lado para o
outro procurando esgueirar-se, atravessou a rua e escondeu-se atrás do tronco
do velho carvalho. De onde veio aquele silvo que assobiara junto do seu ouvido?
Olhou para o prédio em frente. Viu um brilho disparar. Vasculhou as janelas.
Seria da segunda ou da terceira? Era aterrador. Alguém, ou alguma coisa,
parecia persegui-lo continuamente e por mais que se esgueirasse, o som sempre o
encontrava. Limpou o suor que se ia formando na testa com a mão e limpou-a nas
calças. Era impossível escapar. Abandonou o esconderijo e correu para o seu
automóvel. De repente sentiu-se puxado para trás, levou a mão ao braço, mas rapidamente
a retirou ao sentir um líquido quente escorrer. Sangue, verificou, o seu sangue.
Caiu sobre os joelhos. Tinha sido atingido.
Acordou
em pânico. O coração batia forte, a respiração era curta e estrangulada, a pele
gelada de suor. Levantou-se do sofá com um pulo, os punhos cerrados, os olhos
vasculhando as sombras escuras da sala. O sol ondulava, escapando por entre as
fitas do guarda-sol, projetando figuras estranhas no chão. Tinha adormecido.
A sua mente
permaneceu em branco por um momento angustiante, presa por trás das imagens que
a povoavam. Árvores iluminadas pelo luar, o estampido de uma bala, um
cemitério, uma coroa de flores. São apenas imagens, disse a si mesmo esfregando
o rosto com força, usando as mãos.
Afastou-se
do terraço e das vidraças deliberadamente e subiu ao seu quarto. No quarto de
banho espaçoso, olhou o rosto no espelho e limpou as gotículas de suor que lhe brilhavam
na testa. Desviou o olhar e, por breves instantes, reviu o corpo caído no chão.
Eleanor, recordou. Fechou os olhos, mas a imagem permaneceu. O corpo deitado de
lado, as pernas ligeiramente encolhidas e o braço estendido. Abriu ao olhos. A imagem
continuava clara. Viu o braço do qual pendia a liga de borracha que, por estar
tão apertada, causara na pele à sua volta a tez azulada. Lembrou da mão
estendida de onde parecia ter escorregado a seringa que repousava junto à
banheira e logo à frente, o rosto tombado no chão da casa de banho e a poça de sangue
que parecia envolver a cara desfigurada mas que outrora tinha sido, para si, o
mais belo de todos os rostos.
Rob abriu
a porta do armário onde guardava os medicamentos e observou as caixas de comprimidos
dispostas harmoniosamente, umas sobre as outras. Ficou a olhá-las durante
alguns minutos. Seria fácil tomar alguns comprimidos e esquecer. Por fim,
inalou profundamente e fechou o armário. Seria demasiado fácil.
Tirou a
roupa, entrou no chuveiro, fechou o resguardo de vidro e abriu a água quente
que deixou escorrer pelo corpo, lentamente.
Quando
terminou e começou a enxugar-se havia uma densa nuvem de vapor no quarto de
banho. A sua mente estava lúcida de novo.
Vestiu uns calções e uma
camiseta branca pouco cuidada com a expressão back off nas costas e calçou os ténis. Com o cabelo molhado e
despenteado foi até à cozinha, a fim de fazer um café. Sentou-se à mesa com a
caneca na mão. Abanou a cabeça tentando afastar os pensamentos que o incomodavam.
Naquela manhã tivera
sorte, se não fosse aquela rapariga ainda estaria no meio da rua e, quem sabe, podia
ter sido roubado ou o que seria pior, pensou, sem vida. O seu chefe de
segurança tinha-o avisado de que não devia sair à rua sozinho, mas ele sentia-se
preso, vigiado a todo o instante. Queria ir onde lhe apetecesse sem ninguém
atrás de si que lhe dissesse onde podia ou não podia ir, com quem podia ou não
podia falar.
Pensara que naquela zona
remota de um pequeno país como Portugal, não seria reconhecido. Enganara-se.
Durante o último mês e meio conseguira andar entre as pessoas, vaguear pelas
lojas pitorescas, entrar numa tabacaria qualquer e comprar um maço de cigarros sem
que o reconhecessem. Coisas simples de gente simples, tal como ele, mas acabara-se
com a chegada do verão e dos turistas.
Os seus pais pertenciam à
classe média inglesa e tinham algumas posses que lhes permitiram gozar férias
todos os anos, mas não eram ricos. Sonhara construir uma outra vida e ter
dinheiro para gastar à vontade. Tinha conseguido mas, nos últimos anos,
começava a pôr em causa o seu trabalho e toda a sua riqueza. Afinal, para que
lhe servia se não podia usá-la como bem entendesse? Se era obrigado a
enclausurar-se? Na prisão havia, com certeza, homens mais livres do que ele.
Desempenhar diversos
papéis e fazer de conta, sempre tinha sido um dos seus sonhos. Começara muito
jovem, como modelo. A sua aparência tinha-o ajudado, não que ele ligasse muito
para isso, mas a verdade é que o ajudara a ganhar alguns trabalhos. A
representação foi a sequência natural para si, tal como para tantos outros
antes dele. Ao fim de alguns anos, todos se habituavam às câmaras. Diziam-lhe
que era bom no que fazia mas, ao contrário do que pensava a maioria das
pessoas, representar não era um trabalho fácil e muito menos divertido. Um dia
normal de gravações implicava doze a catorze horas de trabalho, sem
reconhecimento de sábados, domingos ou feriados. Trabalhavam horas a fio,
durante dias consecutivos. Em alguns dias, dependendo das cenas que tivesse
para filmar, podia levantar-se às seis horas da manhã e deitar-se às duas horas
da manhã seguinte, repetindo vezes sem conta a mesma cena à procura do ângulo
certo, da visão correta de uma cena idealizada pelo realizador, para tudo se
esgotar num filme em poucos segundos. Começava a cansar-se.
Levou a caneca aos lábios
e deixou que o líquido escorresse suavemente pela garganta. Lembrou os primeiros
anos em que se sentira dono do mundo a que, mais tarde, se seguiram os anos em
que se cansara e enfraquecera. Perdeu-se. Esqueceu-se da família, dos amigos e até de si próprio.
Não o faria outra vez. Por mais difícil que fosse a realidade, ele não podia
fraquejar de novo.
Peter aproximou-se,
atirando-se sobre a cadeira ao seu lado.
- Desapareceste! Para a
próxima avisa o chefe Swanson, diz-lhe onde vais. – dirigiu-lhe um sorriso
condescendente. – Ficou todo stressado.
- Hum, hum – resmoneou
levando a caneca de café aos lábios.
Peter percebeu que Rob
estava num daqueles dias. Algo devia ter acontecido, pensou, acompanhando o
olhar do irmão sobre o oceano que se vislumbrava para lá da janela da cozinha.
A sua profissão
granjeava-lhe falsos amigos e frequentes perseguições de fãs e de paparazzi, que ele se tinha habituado a
aceitar como a pior parte da sua atividade. Contudo, desde o atentado de que
fora alvo, quase deixara de sair à rua.
Os últimos tempos não
tinham sido fáceis. Depois de um período de dependência conturbado, rompeu com
a namorada, afastou-se dos amigos, da representação e deixou de compor, uma das
suas grandes paixões e praticamente já nem tocava na guitarra, o único
instrumento que sempre o acompanhava nas viagens e de que nunca se separava, já
que o piano, há muito tempo tinha sido posto de parte. Fora por tudo isso que
se lembraram de vir para o Carvoeiro, um local pacato e pequeno, num país
igualmente, pequeno e pacato.
- Por que não me contas o
que andaste a fazer? – perguntou, procurando manter um ar despreocupado.
Rob pôs-se de pé,
desviou-se da mesa e aproximou-se da janela abrindo-a para inalar o ar fresco
que soprava do mar. Peter era, além de seu irmão, o seu melhor amigo. Tinha-o
acompanhado durante o mais recente período de crise e ele precisava de falar.
Tirou os óculos escuros que mantivera postos e olhou o céu límpido.
- Ok – e contou sobre o
reconhecimento de que fora alvo e do encontro com Alex, mas não sobre os seus
medos e anseios.
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